Presente histórico em textos científicos: por que evitar

Para situar esta discussão, vou direto aos exemplos:

a) Evitar: “Em 1824, inicia a colonização alemã no Sul do Brasil”.

[presente do indicativo, empregado como presente histórico / narrativo]

b) Preferir: “Em 1824, iniciou a colonização alemã no Sul do Brasil”.

[pretérito perfeito do indicativo]

No primeiro caso, o tempo verbal é o presente do indicativo (inicia), empregado no lugar de pretérito perfeito. Esse uso, conhecido como presente histórico ou presente narrativo, não é, necessariamente, errado. O seu efeito é presentificar acontecimentos e/ou aproximar o narrador / leitor dos fatos narrados (Figueiredo, 2014), conferindo-lhes “o sabor de novidade das coisas atuais” (Bechara, 2009, p. 324) ou a “vivacidade a fatos ocorridos no passado” (Cunha; Cintra, 2017, p. 463). Em acepções semelhantes, o presente histórico confere, ainda, “maior realidade ao fato (é como se o narrador estivesse presente naquele momento presenciando os fatos)” (Bezerra, 2015, p. 306) e, assim, “imaginamo-nos no passado” (Cunha; Cintra, 2017, p. 463).

Faço, aqui, este outro questionamento, que vai além das concepções da gramática: tendo em vista que é impossível, ao menos por ora, voltar ao passado, é saudável que um pesquisador se posicione como um sujeito que assistiu aos fatos pretéritos e incluir o leitor nessa viagem no tempo? Vale lembrar que a historiografia é composta de narrativas, calcadas no tempo e na percepção de quem narra, com base em recortes bastante específicos e na seleção de documentos e fontes. Se “o passado já passou, e a história é o que os historiadores fazem com ele quando põem mãos à obra” (Jenkins, 2009, p. 25), é adequado tentar presentificar o passado via recursos linguísticos?

Por outro lado, o emprego do presente histórico é um “processo de dramatização linguística de alta eficiência, se utilizado de forma adequada e sóbria” (Cunha; Cintra, 2017 p. 463). É, pois, um uso estilístico, de exceção, que funciona muito bem em alguns gêneros textuais – narrativas fílmicas, por exemplo, presentificam o passado na tela, com apoio de outros recursos de expressão para além da linguagem verbal. Todavia, o uso do passado histórico foi introjetado via leituras do nosso repertório e é constantemente replicado nos textos acadêmicos. A maioria das referências consultadas para esta argumentação exemplifica o uso do presente histórico com excertos de obras literárias, cuja tônica é, justamente, a subversão de axiomas da gramática. Ainda assim, valho-me desta advertência: “o abuso que dele fazem alguns romancistas contemporâneos é contraproducente: torna invariável o estilo e, com isso, elimina a sua intensidade particular” (Cunha; Cintra, 2017, p. 464).

Em outras palavras, isso significa que o excesso desse uso em situações desprovidas de uma intencionalidade com vistas a um efeito narrativo distancia o presente histórico de sua funcionalidade no que tange à expressividade. Cai, portanto, na vala comum da mera replicação acrítica, como se, ao citar um fato do passado, o redator/a fosse obrigado, automaticamente, a conjugar seus verbos no presente histórico. Tal uso, no entanto, não é desprovido de regramentos: “Como nos ensinam aqueles que o souberam usar com mestria, quando se emprega o presente histórico numa série de orações absolutas, ou coordenadas, deve a última oração conter o verbo novamente no pretérito” (Cunha; Cintra, 2017, p. 464).

Na prática da redação de textos científicos, com prazos raramente generosos, é desafiador manter constância e coerência ao longo do texto. Como visto, esse recurso linguístico exige habilidades, desautomatizadas, no que se refere às flexões necessárias para o seu bom uso. Em trabalhos longos, escritos conforme o devir da pesquisa, esse tipo de conjugação verbal mais atrapalha do que ajuda. Frequentemente, quem redige é vítima da própria concepção humana sobre a localização dos acontecimentos em um tempo verbal, que, por sua vez, foi assimilado ao longo da vida. Afinal, independentemente do nível de entrosamento com a escrita, quando chegamos à fase de conclusão de um curso de nível superior, sabemos distinguir instintivamente passado, presente e futuro – na vida e no texto.

Além disso, pode ser confuso, para leitores, situar os acontecimentos verbalizados no texto na linha do tempo ao qual se referem. Isso ocorre, sobretudo, em produções que se voltam a fatos documentados sobre o passado para (re)contextualizá-los e/ou compará-los com acontecimentos contemporâneos, não raro no mesmo parágrafo. É bastante comum, e esperado, que pesquisadores estabeleçam tais relações, o que ocorre de forma natural em nível de pensamento, mas pode se perder facilmente em nível de texto quando o sujeito opta pelo presente histórico.

Para mais, embora a redação científica não seja despida de questões estilísticas, é preciso ter em mente a sua função precípua, qual seja: informar com clareza. Ou seja, o texto científico comporta beleza, posicionamentos do/a pesquisador/a, estilos individuais e tons poéticos, mas não tolera ambiguidades e confusões de sentido. Reforço, contudo, que o uso do presente histórico não é errado, no sentido pejorativo da palavra. A despeito disso, questiono: qual a razão para usar tempo histórico / narrativo em um trabalho acadêmico?

REFERÊNCIAS

BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37. ed. rev., ampl., atual. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

BEZERRA, Rodrigo. Nova gramática da língua portuguesa para concursos. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015.

CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 7. ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2017.

FIGUEIREDO, João Ricardo Melo. O presente pelo passado: variação verbal em narrativas de deficientes visuais. Rio de Janeiro: Instituto Benjamin Constant, 2014. Disponível em: http://antigo.ibc.gov.br/images/conteudo/livros/miolos_livros/Livro-O-presente-pelo-passado-FINAL.pdf. Acesso em: 15 jan. 2024.

JENKINS, Keith. A história repensada. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2009.